segunda-feira, 14 de março de 2011

Entrevista com Philip Yancey

O apóstolo da graça divina

yancey1 1024x768 O apóstolo da graça divina
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Sérgio Pavarini
“De mil passará, mas a 2.000 não chegará…” Incontáveis vezes esse vaticínio repetido durante muito tempo foi reputado como “profecia bíblica”. O fato é que chegamos ao ano 2.000 sem nenhum tipo de problemas, o que inclui o tal “bug do milênio”. Foi um ano marcado pela vitória do PT nas eleições municipais e conquistas como a segunda vitória de Guga em Roland Garros. Antigas rivais, Brahma e Antarctica se fundiram e sepultaram a frase clássica atribuída a Vicente Matheus. No campo pessoal, virei titio com o nascimento do meu primeiro sobrinho.
Foi durante esse ano emblemático que dirigi até Águas de Lindóia (SP) para entrevistar Philip Yancey pela primeira vez. O papo foi agradabilíssimo e passamos mais de duas horas conversando. O escritor e jornalista já se destacava em meio à mornidão reinante nas prateleiras de livros cristãos e iniciou debates que ainda fazem parte das discussões entre o rebanho. Em sua quinta visita ao Brasil para o lançamento mundial de “Para que serve Deus“, a Mundo Cristãogentilmente me convidou para rever um dos meus autores favoritos. Nada melhor para celebrar esses 10 anos do que levar o Henrique (meu sobrinho) para acompanhar o encontro. Confira o nosso papo.
Dez anos atrás o sr. afirmou que o seu público havia mudado e que muitos não-cristãos estavam lendo seus livros. Como é o seu público hoje?
Só posso falar sobre os leitores que entram em contato comigo, que me escrevem. Em geral, são pessoas que foram machucadas de alguma maneira pela igreja e, mesmo assim, não desistiram de sua busca por Deus. Um dos motivos que as atraíram a meu trabalho é que sou muito franco sobre minhas próprias feridas. Se a pessoa não crê em Deus, provavelmente nem pegará meus livros. Porém, se elas acreditam que existe “algo mais” e não se sentem confortáveis indo a uma igreja, então esse é o tipo de pessoa que lê os meus livros.
Os últimos presidentes norte-americanos declararam-se cristãos. Que diferença isso fez para os EUA? Estamos às vésperas de eleições no Brasil. Cristão deve votar apenas em cristão?
É interessante que um dos presidentes que recebeu o maior número de votos nos últimos tempos foi Jimmy Carter. Ele é um conhecido batista do sul. Durante todo o período em que foi presidente, continuou dando aula de Escola Bíblica todos os domingos. Ninguém pode questionar a sua fé. O mais engraçado é que a maioria dos cristãos norte-americanos não gostava dele, nem de sua maneira de fazer política. Então veio Ronald Reagan, que foi o nosso primeiro presidente divorciado. Ele quase nunca ia à igreja e não deu quase nenhum apoio a obras cristãs beneficentes. Mesmo assim, era muito popular entre os evangélicos conservadores. Eles gostavam do seu jeito de fazer política. Quando penso sobre isso, lembro-me de algo que Martinho Lutero disse: “Se for me operar, prefiro um médico muçulmano a um açougueiro cristão”. Prefiro um líder que saiba liderar e conheça as melhores políticas para o país. Não adianta ter alguém que saiba a coisa certa a dizer, mas não age tendo em vista o que é melhor para a nação.
Após sete anos de operações militares no Iraque, recentemente o presidente Obama colocou oficialmente um ponto final nessa guerra. Há alguns anos, os escritores Max Lucado, John McArthur e Bob Jones estiveram no Larry King Live e usaram textos bíblicos para defender a ocupação do Iraque. Qual a sua posição em relação a esse conflito?
Penso que cometemos um dos maiores erros de política externa possíveis. Foi algo que irritou grande parte do mundo muçulmano. Quase todo, na verdade. Não existe nenhum tipo de prova de que o Iraque teve algo a ver com 11 de setembro. Foi parecido com o que ocorreu quando o Japão bombardeou os EUA, em Pearl Harbour. Não poderíamos invadir o Brasil como resposta! O episódio de 11 de setembro foi uma tragédia terrível. Foi um ato de guerra… mas não do Iraque. Muitos dos problemas econômicos que os EUA estão enfrentando atualmente tiveram origem nessa guerra. Nos meus textos daquela época, levantei muitos questionamentos sobre isso. Recebi manifestações iradas de cristãos que não gostavam do que eu estava dizendo. Olhando para trás, creio que isso será visto pela história como um grande e triste engano. Espero que o Iraque acabe se tornando uma maravilhosa e próspera república democrática. Contudo, não vejo nenhum sinal de que isso acabe acontecendo em um futuro próximo.
Pesquisa recente da Lifeway aponta que um em cada oito americanos está abandonando a igreja. Outro levantamento mostra que 18% deles pensam que Obama é muçulmano e 14% vão ainda mais longe, crendo que ele pode ser o anticristo. Seus livros já venderam mais de 15 milhões de exemplares. Em alguns momentos não se sente fracassado como “apóstolo da graça divina”?
Essa é uma pergunta muito boa. Nunca me vi como o líder de um movimento ou algo parecido. A leitura é algo muito pessoal. Estou sozinho quando escrevo e você está sozinho quando lê o que escrevi. Não é como se eu fosse um político ou uma figura pública. Não avalio se meus esforços foram bem-sucedidos pensando em termos numéricos, mas se consegui transmitir minha mensagem. Recebo muitos e-mails de pessoas que conseguiram entender o que a graça de Deus fez em suas vidas, ajudando-as a se aceitar. Recebo também várias mensagens sobre como essa graça mostrou-lhes a maneira errada como tratavam os outros. E elas procuraram consertar isso. É só disso que eu preciso.
Na última postagem que fez em seu blog, o sr. fala sobre a viagem ao Brasil e à Argentina, ressaltando o quanto a plateia brasileira é agradável. Fala também que depois vai voltar às Cataratas do Iguaçu, lugar que visitou pela primeira vez em 1977. Na área de comentários, ninguém fala das belezas naturais ou da cordialidade brasileira. Pela zilionésima vez, alguém questiona sobre suas afirmações a respeito da homossexualidade. Não está cansado de falar sobre isso?
Só fui ver isso agora há pouco, antes de falar com você. Escrevi o post e logo em seguida vim para o Brasil. Fui olhar o que as pessoas comentaram… e não tinha nada a ver com a minha viagem! [risos] As pessoas se fixam nessas questões. Em um dos meus livros, usei duas citações de um homem que trabalha com vítimas da AIDS. Ele não é homossexual e não aprova isso, mas acredita que é sua obrigação amar essas pessoas. Ele disse: “Aprendi que os cristãos ficam muito irritados com os que cometem pecados diferentes dos seus”. Um dos leitores do blog ficou muito indignado. Ele me perguntou por que eu não podia falar a verdade, afirmando que estava falando como um político, camuflando minha opinião. O fato é que não sou juiz do comportamento de ninguém. Minha obrigação, mesmo com as pessoas que tenho dificuldade de entender e que desaprovam o meu trabalho, é apresentar-lhes a graça e o amor divinos. Não devo tentar decidir as coisas por Deus. Agora é verdade, fico cansado ao ler esses comentários. Escrevi sobre as Cataratas do Iguaçu e eles novamente perguntam: “O que você pensa da questão gay?” [risos] Recentemente, li um livro de 1.000 páginas sobre a história do cristianismo. Ele apresenta todas as obsessões da igreja ao longo de centenas de anos: a natureza de Jesus, a liderança do Papa, a Virgem Maria, os ícones, os grandes debates sobre a justificação, essas coisas. Quando olhamos para a questão gay, vemos que é um dos grandes temas de nosso tempo. Mas nem se compara a essas outras questões [risos] Eu não vou perpetuar esse debate.
Ateus e cristãos hoje se digladiam em especial no campo literário. José Saramago, Christopher Hitchens e Richard Dawkins são três exemplos de combatentes do cristianismo. A crença de um escritor o influencia na hora de escolher seus livros ou os avalia principalmente pela qualidade de sua obra?
Sim, a crença dos autores influencia. Sempre procuro ler obras de pessoas que têm uma visão diferente do mundo. Afinal, eles certamente exercem alguma influência sobre os meus possíveis leitores. E influenciam a mídia. Nos EUA, você vê essas pessoas na TV o tempo todo. Não quero entrar numa discussão, mas preciso conhecer o pensamento deles. Na verdade, fui convidado para debater com Richard Dawkins quando eu estava na Inglaterra. Eu me recusei. Eles não precisam de um americano debatendo com esse ateu inglês. No entanto, quero refletir cuidadosamente sobre o ponto de vista dele.
Conheci vários autores por meio de suas indicações, especialmente em Alma sobrevivente e Muito mais que palavras. O que o sr. tem lido ultimamente? Quem são os novos autores que deveríamos ler?
Tenho lido vários livros de memórias e biografias porque pretendo escrever uma biografia. Fiz uma grande lista depois de escrever para amigos e pedir que me indicassem boas biografias. Provavelmente, já li cerca de 150 obras desse tipo. Algumas delas foram perda de tempo e outras foram muito inspiradoras. Bons autores? Eugene Peterson é alguém que tudo o que escreve é muito bom. Uma pessoa relativamente jovem, Mark Buchanan. Não sei se você o conhece, é um pastor canadense. Também gosto de Donald Miller, que escreveu “O que os pinguins me ensinaram sobre Deus”. Anne Lamott é outra boa dica. Uma autora muito irreverente, mas provocante. Essas são algumas das novas vozes que gosto de ouvir.
O que o motiva a escrever livros voltados para pessoas decepcionadas com a igreja institucional?
Muitos livros cristãos procuram apenas impor ideias a fim de defender a igreja. Eu não sou pastor. Não ganho meu sustento da igreja e não vejo motivos para defendê-la. Eu amo a igreja. Eu frequento uma igreja. Mas não sou do seu departamento de relações públicas. As pessoas dizem “você está criticando a igreja” e eu respondo “você já leu Coríntios, Gálatas ou Apocalipse?” A Bíblia é muito honesta ao dizer que a igreja é a opção de Deus para anunciar a sua mensagem. Contudo, também diz que, em algum momento, a igreja entende equivocadamente qual é essa mensagem. Então, parte do meu trabalho como jornalista é tentar apontar o que fazemos corretamente e também o que está errado. Meu livro mais recente tende a falar mais sobre o que ela faz corretamente do que sobre o que há de errado. Acho que meus outros livros pendiam mais para o lado negativo. [risos]
Em seu novo livro, após relatar sua visita ao Museu Nacional de Direitos Humanos em Memphis, o sr. faz uma pergunta: “Daqui a 150 anos, de que a igreja pedirá desculpas?” Se essa pergunta fosse feita no tempo presente, de que a igreja se desculpar hoje?
Essa é uma ótima pergunta. No meu país, e isso também é verdade aqui no Brasil, temos muitas pessoas morando na rua. Saí para correr em um parque hoje pela manhã e vi a polícia retirando alguns sem-teto da rua e os levando para algum outro lugar. Eles estavam debaixo de pedaços de papelão e cobertores velhos. Talvez eles estivessem fazendo algum tipo de festa por causa do feriado de hoje [7 de setembro]. Não sei. Mais tarde, fomos a um orfanato mantido por um grupo batista. Eles tiram essas crianças abandonadas das ruas. Vi que eles estavam dando banho em um menino de cerca de dois anos de idade. Os policiais o encontraram, retiraram-no da casa dos seus pais e o levaram para essa casa-lar. Temos todos esses problemas. Mesmo que de maneira tímida, a igreja está tentando ajudar. Certamente nos EUA há um grande egoísmo na igreja. Perdemos tempo demais discutindo o tamanho dos nossos estacionamentos, o tipo de ar-condicionado… Temos tantos problemas no mundo! Pense nas questões ambientais. Os cristãos demoraram muito para começar a falar sobre esse assunto, mas nossa voz é importante. Temos motivo para isso. Acreditamos que a Terra é criação divina. Acreditamos que Deus é um artista. A igreja precisa ter um líder nessa área. Claro, há outros problemas como o racismo e a tendência de julgar a todos. Parecemos ser os juízes morais da sociedade, em vez de sermos defensores da graça de Deus.
Igreja emergente, igreja orgânica, igreja em casa… Como o sr. avalia esse tipo de resposta à crise vivida pelas comunidades evangélicas em muitos países?
Sempre fico surpreso como, quando cremos que já entendemos sobre os métodos de Deus, o Espírito se manifesta de novas (e ótimas) maneiras. Quem poderia imaginar algo como o Jesus Movement [Movimento de Jesus], um bando de hippies nos anos 1960, na Califórnia? Quem poderia prever que o movimento carismático se espalharia tanto pelo mundo? Não faço parte do movimento carismático nem do Jesus Movement, mas comemoro o fato de que não conseguimos colocar Deus dentro de uma caixa. Vejo isso em especial nas igrejas que se reúnem nas casas, ao oferecer uma grande oportunidade para as pessoas terem comunhão. A maioria das igrejas nas quais você pode ir em um domingo qualquer não oferece comunhão verdadeira porque funcionam como instituição. É como ir para a escola. A igreja nas casas se parece mais com uma família. Foi assim que tudo começou no Livro de Atos. Não fico preocupado com esse tipo de coisa. Eu me alegro que existam. Talvez não me sentisse confortável fazendo parte delas, mas acho excelente.
Aludindo a um de seus livros antigos, ainda é possível encontrar Deus em um “lugar tão inesperado” como a igreja institucionalizada?
Sim, esse é um lugar inesperado. Na verdade, tento fazer isso no meu novo livro, “Para que serve Deus“. Veja lugares como a prisão na África do Sul ou a igreja subterrânea na China (que é parte do movimento de igreja nas casas), ou ainda Oxford, onde vivia C. S. Lewis. Na verdade, é possível dizer que este livro também trata sobre encontrar Deus em lugares inesperados. Sou jornalista e sempre estou em busca de boas histórias. Geralmente, elas estão em lugares inesperados. Se vamos à igreja não pensando tanto no que podemos ganhar com isso, mas abertos para ouvir Deus falar, aí ele se manifesta. Deus gosta de fazer sua presença ser percebida por pessoas que realmente o estão buscando. Normalmente, igrejas são lugares em que você encontra esse tipo de atitude… mas nem sempre.
fonte: Mundo Cristão
foto: Tom Fernandes

Um comentário:

Dani Velasco disse...

Queria estar presente nessa entrevista... bom demais!